terça-feira, 14 de junho de 2011

A curiosidade matou o gato

Estava eu ontem indo estudar de madrugada para o teste, quando decidi tirar da mochila e guardar um livro na prateleira. Resolvi guardar dentro dele um papel com o rascunho do que será minha primeira tatuagem e meu coração mordido de papel cartão. Abri o pequeno livro numa página aleatória e por curiosidade li o texto que se iniciava naquela página, e agora percebo que tenho realmente alma de gato, porque a curiosidade me matou.

Arte e Fuga da Espera

– O que espera uma pessoa que espera?

Olho aquela ali na praia, na esquina, no aeroporto, no bar. Irrequieta. Espera o que? Seu pescoço volta e meia faz meia-volta como um farol que não ilumina nada. Tão-somente, circularmente espera. Viciosa e ansiosamente espera.

A pessoa que espera não aguarda apenas que o outro chegue. Fantasia que com o outro e a sua forma, com o outro, e a sua voz, chegará o que ela desde sempre espera. Esperar assim é esperar perdidamente.

Quem espera, mas está seguro que o outro vem, na verdade, não espera. Vive plenamente eu tempo fluindo com o rio, aguarda a confluência com o outro, certo de que hão de se misturar em águas, peixes, terras e emoções no mesmo orgasmo no mar.

A verdadeira espera é diferente. A pessoa que espera, mais que as outras, está exposta na vitrina de seus gestos. Esta voltada para fora, perdeu seu centro, precisa de uma visão que a complemente, está sofridamente frágil, está sem pele com a carne viva ao vento.

O tempo não passa. Ou pior, transpassa, por dentro, rasgando em aviltamento.

A pessoa que espera está coagulada no instante.

O que espera é estátua. Pulsante.

Esperar é tarefa pesada demais para os mortais.

E na espera, há um momento em que acontece algo surpreendente. Algo se erige no vazio. De tanto querer ver e encontrar, de tanto querer ouvir e tocar, começa-se a vislumbrar o outro no corpos alheios. De repente, começa-se a alucinar. Uma nuca, um certo modo de prender ou soltar os cabelos é presença no ausente. O que espera, desesperadamente tira de dentro de si mesmo o outro falante como um ectoplasma. Há qualquer coisa de espelho, espelho vazio, vazio nessa espera angustiante.

O esperador costumaz sabe seu ritual. Já abatido, exaurido, primeiro segrega algumas desculpas pelo outro: certamente aconteceu algo imprevisto, atrasou-se um pouco, é natural. E vai se dando tempo, inventando razões, criando etapas, prazos novos, falsos limites: – espera só mais um pouco, não é possível, ele vai ver quando chegar. Súbito passa a agredir o outro imaginariamente, se eriça todo, começa a depreciá-lo, mas é a si mesmo que agride, é para dentro que sangra. E se o outro chegasse, pobre do que espera! num átimo e recomporia todo e iria lamber seus pés.

(...)

Há pessoas que esperarão a vida inteira. Há pessoas que farão os outros esperarem a vida inteira. Na verdade, existe um secreto pacto entre o que se faz esperar e o que espera, como há entre o rejeitador e o rejeitado, entre o sádico e o masoquista. É um jogo de cão e gato. E quando o rejeitador fareja no ar a sua vítima, começa o ritual. O esperador vocacional, por sua vez, cai direitinho na armadilha. Conhece as etapas dos jogo e mal encontra o outro, vai logo tomando o caminho das esquinas, se postando diante das portas e janelas, rondando os bares e aeroportos. O rejeitado olha mais do que qualquer outro para o telefone. Não apena olha, ouve sua chamada nenhuma.

Quem espera é um fio tenso, que a qualquer hora vai se partir. Entre o seu corpo e o mundo há um vácuo triste e denso. Há qualquer coisa do condenado com a cabeça exposta no patíbulo, cuja guilhotina, no entanto não vem.

E se nos aproximarmos do lugar onde por uma eternidade esteve aquele que esperou, veremos não apenas marcas sobre chão, papeis e tocos de cigarro. Ali estão outros destroço. Pedaços, fragmentos de um corpo, restos de sentimentos deixados por aquele que inutilmente esperou. Ali perdeu-se algo. Ali a vida de alguém coagulou.

Sant'Anna, Affonso Romano de. Que presente te dar.

Rio de Janeiro: Expresão e Cultura, 2002

O mais importante de ser lido está em itálico. Foi por isso que eu passei, exatamente isso eu senti e pensei. Não conseguia desabafar, não havia ninguém para ouvir, não conseguia me expressar tão bem em textos... Resolvi dar fim à história antes que a história desse um fim a mim. Mas não consigo esquecê-lo, não consigo enterrá-lo e a cada dia surgem mais coisas me lembrando dele e de nós, como este texto desse livro. Ele nunca irá embora enquanto existirem restos de sentimentos...

Nenhum comentário:

Postar um comentário